Rio Brilhante/MS - 9 de setembro de 2025

No SUS, médica travesti Giulia deu voz às “travas” apesar do medo Sem orgulho de ser uma das poucas médicas trans, senão a única na saúde pública de MS, ela dispensa os títulos…

Médica trans do SUS em MS é homenageada por atuação em defesa da população LGBTQIA+: “Sou exceção da exceção”

Aos 26 anos, Giulia Rita decidiu usar a medicina como instrumento de acolhimento, dignidade e visibilidade para pessoas trans. Sem se orgulhar por ser uma das únicas médicas trans — talvez a única — atuando no Sistema Único de Saúde (SUS) em Mato Grosso do Sul, ela rechaça títulos e condecorações: “O que importa é ajudar minha comunidade a ser vista pelo sistema de saúde e pela sociedade”.

Mesmo assim, foi homenageada na Assembleia Legislativa de Mato Grosso do Sul durante a sessão solene “Diversidade e Cidadania: trajetórias profissionais que transformam histórias e constroem o futuro”, voltada a reconhecer o papel de pessoas LGBTQIA+ em suas áreas de atuação. No palanque, Giulia usou o espaço para lembrar a importância do SUS na vida das pessoas trans e denunciar a invisibilidade e as barreiras enfrentadas diariamente por sua comunidade.

“Como é sofrido e solitário ser uma travesti que trabalha no SUS”, desabafou. “É dolorido porque vejo diariamente as consequências de dois graves problemas que afetam minha comunidade: o desemprego e as violências que dificultam nossa permanência nos espaços de trabalho. Em um mundo que pauta o acesso à moradia, educação e saúde pela renda, a falta de trabalho é quase uma sentença de morte.”

Natural de Brasília e criada entre a capital federal e Fortaleza (CE), Giulia se mudou para Mato Grosso do Sul em 2016 para cursar medicina em Três Lagoas. No segundo ano da graduação, em 2017, ela se reconheceu como uma pessoa trans. Mas compartilhou sua identidade apenas com pessoas próximas, com receio da violência e da rejeição no meio acadêmico.

“Por medo. Por justamente não conhecer nenhuma outra pessoa trans que era médica. Eu segurei as pontas”, lembra.

Apesar da conquista do diploma, a trajetória foi marcada por episódios de transfobia. Giulia chegou a desistir da residência médica em um hospital da Capital, mas seguiu atuando no SUS, nas UPAs (Unidades de Pronto Atendimento) e CRSs (Centros Regionais de Saúde). Para ela, a saúde pública não é favor: é direito — e deve ser garantida a todos, sem exceções.

A escolha pela medicina não veio de um sonho infantil. O propósito surgiu em sala de aula, quando ela entendeu a saúde como um direito coletivo e percebeu que poderia, por meio da profissão, impactar diretamente a vida de outras travestis e pessoas trans.

“Naquele momento eu me encontrei enquanto cidadã, enquanto profissional. Achei um propósito, e isso me motivou muito durante a graduação.”

Sem romantizar sua trajetória, Giulia faz questão de reforçar que não é exemplo de sucesso, mas sim uma exceção — em um país onde a expectativa de vida de pessoas trans ainda gira em torno de 35 anos e onde a presença dessa população em universidades, concursos públicos e espaços de prestígio profissional é rara.

“Não olhem para mim e pensem ‘as pessoas trans chegaram lá’. A gente não chegou. Eu sou exceção da exceção. A gente ainda não tem vagas afirmativas para pessoas trans dentro das universidades, de concurso público. A gente não está chegando. A gente continua degolada, na prostituição, em empregos informais.”

Citando a artista e ativista Linn da Quebrada — “sou filha das travas e obra das travas” —, Giulia defende que a raiva, longe de ser evitada, deve ser canalizada como ferramenta de luta: “Não direcionem essa raiva para o nosso próprio corpo, nem para a nossa comunidade. Direcionem para quem pratica e sustenta o sistema baseado em ódio, intolerância e fundamentalismo. Se inspirem, nos inspiremos umas nas outras”.

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